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Historiadora resgata passado operário do Jardim Botânico em livro


A historiadora Luciene Carris acaba de lançar mais um livro, “Histórias do Jardim Botânico: Um Recanto Proletário na Zona Sul Carioca”. O título, escrito após uma vasta pesquisa que durou cinco anos, relembra o passado operário do bairro, passando por viéses urbanos, sociais e políticos por meio de uma escrita leve, o que transporta o leitor a uma experiência que se assemelha a um passeio.


O material resgata o período compreendido entre 1884, quando a Fábrica de Tecidos Carioca foi inaugurada na Rua Pacheco Leão, e 1962, quando a Rede Globo se instalou no endereço e vendeu parte dos terrenos para um condomínio residencial. Dessa maneira, o bairro é retratado como um subúrbio em plena Zona Sul, já que era distante do Centro e com moradores majoritariamente de baixo poder aquisitivo, realidade bastante diferente dos dias atuais.


Em meio aos fatos relembrados, Luciene aborda desde o movimento anarquista, que era muito forte naquela região, a participação dos trabalhadores na Revolta da Vacina. “Ela também afetou o Jardim Botânico. Fora isso, houve muitas greves em 1903, 1906, 1907… Os operários de todo o Rio eram muito solidários”. A escritora menciona até os trabalhadores infantis que ganhavam a vida no local: “Apesar de proibido, havia muitos menores de 14 anos”. Nem as histórias mais recentes, como a visita do então candidato à presidência Juscelino Kubitsheck, foram deixadas de lado: “Todo mundo vinha em época de eleição”.


Apesar do material retratar a janela de tempo da existência da Fábrica de Tecidos Carioca, ela não é a única abordada. Outras, como a Fábrica Corcovado, também ganham espaço. Esta, inclusive, ganhou destaque no folheto na Exposição Internacional de Centenário da Independência, em 1922, quando foi mencionada como exemplo do que era produzido no Rio de Janeiro. Em paralelo, as mudanças urbanas, principalmente as ocasionadas pela especulação imobiliária do fim do século XIX, são mencionadas para contextualizar a passagem do tempo e a mudança no perfil dos moradores da região.


“No Centro, as vilas operárias foram para o chão. Temos cortiços, estalagens, mas vilas operárias, apenas uma ou outra. Aqui, temos uma lindíssima, tombada, que está virando galerias de arte e restaurantes. As pessoas vão comer no Jojô e não sabem desse passado. O tombamento, entretanto, provocou gentrificação. As pessoas estão se mudando porque ficou caro. Virou bairro de elite”, reconhece, citando que muitos lembram apenas da ideia aristocrática do Jardim Botânico imperial e dos viajantes que frequentavam o parque, mas esquecem que também havia escravos na região.


O livro traz ainda histórias de famílias e dos logradouros que compõe o bairro, ideia diretamente baseada no título “Alma Encantadora das Ruas”, de João do Rio. “Me inspirei nisso, de andar e descobrir por que elas tem esse nome. Por que se chamam Pacheco Leão, Von Martius, Lopes Quintas…”. A pesquisa demorou cinco anos e cada vez que Luciene acreditava que o trabalho estava completo, descobria uma nova informação. O lançamento ficou definido que seria em 2020, mas a pandemia inviabilizou o acontecimento. Mesmo considerando o material pronto, continuou o trabalho. “Entrevistei muitas pessoas. Falei com o dono da padaria, o seu Armando, que tem histórias fascinantes; com os moradores antigos; com o pessoal da vila operária…”, aponta.


Em meio às descobertas, uma em especial foi recebida com muito espanto: “Adoro carnaval e blocos de rua e descobrir que Haroldo Lobo morou aqui e foi operário da fábrica foi fascinante. Ele compôs mais de 60 marchinhas e idealizou o Bloco da Bicharada”, comenta, citando “Alla-La-Õ” e “Índio Quer Apito” entre alguns dos tabalhos do artista, autor também de “Tristeza”, sucesso principalmente na voz de Baden Powell. “Fiquei muito surpresa, mas mais surpresa ainda por essa figura ser desconhecida no bairro, A gente sabe que o Tom Jobim morou na Peri e Sarah Vilela, mas o Haroldo Lobo não virou nome de rua, estátua, nada… É uma figura importante do bairro!”.


O interesse no passado proletariado surgiu aos poucos e quase que por acaso na vida da autora. Moradora do Jardim Botânico desde os quatro anos, desde aquela época demonstrava interesse em conhecer mais sobre os lugares frequentados, como parque homônimo e a Lagoa Rodrigo de Freitas. Mais tarde, estudou em todas as escolas públicas do bairro e nelas, escutava colegas dizendo que os pais ou avôs trabalharam nas fábricas. O primeiro contato com uma vila operária surgiu quando, ainda na infância, conheceu uma pessoa que vivia na da Carioca América Fabril. “Entrei e vi o pé direito muito alto, tábuas corridas de madeira boa… Aquilo lhe marcou”. Mais tarde, aos 11 anos, teve a oportunidade de visitar outra: “Fui fazer um trabalho escolar em uma enorme na Rua Abreu Fialho, que é uma antiga vila da Sauer Saneamento. Ali, viviam muitas pessoas e aquilo também ficou na minha cabeça”.


Essas experiências voltaram à tona quando, mais velha, se relacionou com um rapaz cuja família tinha ligações com esse passado. “Minha sogra falava muito das vilas operárias e dos trabalhadores. Ela me mostrou fotos, mas, na época, não dei tanta atenção. Escrevi um livrinho para meu filho, mas ele era muito pequeno e não se importou”. Apenas durante seu estágio pós-doutoral com o professor Antonio Edmilson Martins Rodrigues, especialista na história do Rio de Janeiro, surgiu a oportunidade de estudar a fundo o passado do bairro, desbravando suas memórias infantis que vieram a dar origem ao livro.


Para a pesquisa, Luciene utilizou fontes variadas como antigos documentos, registros de jornais da época abordada, testemunhos de moradores antigos e também as fotos que sua sogra guardava, além de fontes literárias. “Há uma crônica do Machado de Assis que narra a história do Leandrinho que, em meados de 1950, jogava xadrez no Caju e sai de lá para comer no restaurante que tinha em frente ao Jardim Botânico (parque). Isso me provovou a reflexão de como seria o bairro daquela época. O José de Alencar também aborda a Floresta da Tijuca e o parque do Jardim Botânico. O Vinícius de Moraes morou ali e fez um poema sobre a Rua Lopes Quintas, apontada como triste e feia”, conclui.


“Histórias do Jardim Botânico: Um Recanto Proletário na Zona Sul Carioca” foi lançado pela Editora Telha e pode ser adquirido em seu próprio site, no da Livraria da Travessa e do Amazon.

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