Visitar a localidade onde os livros se passam é o sonho da maioria dos leitores. Para a sorte dos cariocas, muitos dos romances clássicos da literatura brasileira se passam no Rio, o que faz essa possibilidade ser viável. Diversos endereços célebres desses títulos podem ser visitados, ainda que muitos desses cenários tenham sido modificados através do tempo.
Machado de Assis, sem dúvidas, foi o autor que mais retratou espaços da cidade em suas obras, sempre contextualizando seus textos em locais que realmente existiam. Talvez o título com maior número de pontos seja “Quincas Borbas”, que retrata uma enormidade de lugares do Rio, mas apesar de tantas menções, nenhuma é alçada ao posto de personagem da trama como ocorre com a Rua dos Mata-Cavalos em “Dom Casmurro”. O espaço teve tanta importância na vida de Bentinho que, adulto, ao se mudar para o Engenho Novo, fez questão que a nova residência fosse inspirada na anterior, onde viveu com sua mãe e conheceu Capitu ainda na infância, e não a toa o nome aparece 21 vezes ao longo da história, além das citações indiretas.
Apesar de o nome não remeter a nenhuma localidade atual, grande parte dos cariocas já passou pelo logradouro: trata-se da Rua do Riachuelo. O personagem descreve que o endereço era distante dos Arcos da Lapa, depois até da Rua dos Inválidos, perto da Rua do Senado. Apesar de que aquele trecho da via ser repleto de antigos casarões preservados, provavelmente nenhum daqueles inspirou o escritor, mas quem quiser brincar de faz-de-conta encontra prédios assobradados, com três janelas de frente, exatamente como a descrição narrada pelo personagem, ainda que nenhum esteja situado em uma chácara, como a que ele morava, nem no alto dos seis degraus que o protagonista subiu correndo para visitar a mãe no seu leito de morte.
Por mais que as dúvidas sobre a existência do imóvel original sejam tão difíceis de serem respondidas como o célebre questionamento dos leitores após o último capítulo (afinal, Capitu traiu ou não?), não há mistério acerca dos endereços que inspiraram outros títulos. É o caso do antigo prédio do Colégio Abílio, em Laranjeiras. A maior parte dos leitores não associa esse nome a livro algum, mas foi nessa instituição que Raul Pompeia estudou e se baseou para seu maior sucesso, “O Ateneu”.
No livro, o espaço situa-se no Rio Comprido. Para os leitores mais atentos, a instituição fictícia ficaria na Rua Santa Alexandrina, que possibilitaria a descrição trazida na história (“As eminências de sombria pedra e a vegetação selvática debruçavam sobre o edifício um crepúsculo de melancolia, resistente ao próprio sol a pino dos meios-dias de novembro”), ainda que Pompeia abusasse da licença poética ao explorar a geografia local (em outra passagem, o escritor cita que a escola promovia passeios pelo Dois Irmãos e pelo Corcovado durante as madrugadas, como se tais relevos ficassem perto o suficiente para os alunos irem a pé).
Na vida real, sua fonte de inspiração era o antigo palacete de Teixeira de Freitas, ainda erguido na Rua Ipiranga, 70, onde, atualmente, funciona a sede da Sociedade Amantes da Instrução. Posteriormente, o Colégio Abílio passou por outros endereços, como a Rua Marquês de Abrantes e a Praia de Botafogo (as imagens dessa última sede são as associadas à instituição na internet), mas Pompeia estudou na original e retratou, em desenhos, a fachada daquela época, muito semelhante à dos dias atuais. A principal mudança se deu no acesso, antes por meio de uma escadaria circular no meio do edifício, substituída por duas triangulares, uma na esquerda e outra na direita; e novas portas foram abertas, em substituição à anterior, fechada. O escritor, por meio de suas ilustrações, também indicou que havia um muro separando o jardim fronteiriço da via pública. Este foi substituído por um gradil com o passar dos anos, ainda que as colunas ao lado do portão ainda estejam lá.
Outro endereço que saiu da vida real para ser imortalizado na literatura é a antiga Estalagem de São Romão, de “O Cortiço”. Identificado no livro como situado na Rua de Sorocaba, tal informação confunde os leitores, que passam a crer que o espaço fictício era na Rua Sorocaba, também em Botafogo, quando, na verdade, a citação faz referência ao antigo nome da Rua Marechal Niemeyer, local real de onde existia o conjunto que inspirou Aluísio Azevedo, que teria vivido ali. Não a toa diversas passagens do livro citam à Rua Bambina como a poucos passos da entrada do lugar.
É exatamente no encontro dessas duas vias que se situa o sobrado com as nove janelas de peitoril que, na história, pertenceu a Miranda. A casa é atualmente, sede de uma igreja, O personagem mostrava-se incomodado com o tamanho do quintal (que realmente existiu, conforme indicam fotos antigas - com o passar do tempo, o terreno foi edificado, somando um anexo à construção original) e embora tentasse adquirir parte do terreno aonde o cortiço viria a ser construído, deparava-se com a recusa de João Romão. Ironicamente, aquele pedaço cuja venda fora rejeitada na ficção foi o único preservado na vida real e até um restaurante funciona ali. O cenário difere bastante do retratado na obra, quando havia 95 moradias no conjunto, mas cruzando a Rua Bambina, há outros imóveis que certamente estavam de pé durante a vivência de Azevedo no local e que podem ter inspirado alguns dos comércios apontados como próximos ao espaço – inclusive, a casa de João Romão ficaria ali, já que o livro menciona, já no fim, que ficava de frente para o de Miranda.
O realismo na descrição do espaço era tanto que até o curso d’água que, na trama, permite o trabalho das lavadeiras naquele conglomerado, existe: o Rio Banana Podre, que nasce no Morro Santa Marta, segue por em direção ao mar, ainda que atualmente esteja encanado. Da mesma forma, as passagens nas quais João Romão sentava-se naquele pedaço e contemplava sua pedreira também poderiam ter acontecido na vida real e nada impede que os fãs da obra façam o mesmo. Olhando em direção ao morro, ainda pode-se ver os cortes feitos pela Pedreira da Rua Assunção, mas a visibilidade dela é melhor do logradouro que dá nome ao espaço, pouco antes de chegar à Rua Marechal Niemeyer, onde, em breve, será erguido um novo prédio que tapará a paisagem. Quando funcionava, a pedreira ocupava uma área de 7,5km². Nos anos que antecederam à publicação, os principais produtos feitos daquele material extraído eram realmente os lajedos e os paralelepípedos, conforme descrito por Azevedo, mas diferente do que o avarento João Romão faria, os proprietários reais investiram em bastante publicidade para aquele negócio.
Já “A Moreninha” seguiu o caminho inverso, inspirando a criação de espaços que remetessem à obra. A Ilha de Paquetá foi atribuída como o cenário, por mais que nenhuma citação no livro fizesse referência ao seu nome. Em 21 momentos, o escritor Joaquim José de Macedo optou por suprimir a identificação do espaço onde a trama se passa, substituindo-a por reticências (“ilha de…”), evidenciando o uso da licença poética para falar de um lugar fictício. Não a toa, a mesma estratégia foi adotada nas citações às ruas (“rua de...”) e até para camuflar a data em que a história se passa (sabe-se apenas ser no século XIX, mas até a década é escondida por meio daquele artifício). Apesar do mistério, a associação com Paquetá foi imediata: já em 1850, seis anos após a publicação, a mídia e as adaptações teatrais já davam como certa a localização, já que muitas características são comuns aos dois espaços: tratam-se de ilhas pequenas, pitorescas, frequentadas pela Corte e situadas há aproximadamente 1 hora de barco do Centro do Rio.
Por este motivo, o título inspirou o nome de várias das atrações do local. A chamada “Casa da Moreninha” serviu de cenário para a novela da Globo exibida em 1975 e até os dias atuais é apresentada aos visitantes como o local onde o romance se passa. O imóvel, de 1812, é uma residência particular, mas os proprietários aproveitaram a popularidade para instalar uma placa com o apelido famoso no portão. Assim como no livro, o imóvel situa-se perto da estação de desembarque por onde as pessoas chegam, no meio da ilha e bastante perto do mar, mas, se um dia o caminho foi adornado pelos coqueiros descritos, essa vegetação ficou no passado.
Já a chamada Praia da Moreninha situa-se no outro extremo e em um dos seus cantos, fica a escada de concreto que leva à Gruta dos Amores, apontada por muitos como a antiga residência da tamoia Ahy. Até a saída no fundo, por onde D. Carolina teria fugido, está lá. A lenda retratada na história assemelha-se bastante do mito local envolvendo os índios Poranga e Itanhantã. Poranga, assim como Ahy, também subiria no rochedo que faz de teto para a gruta e para a alegria dos leitores, é exatamente ali que fica a Pedra do Itanhangá, apelidada popularmente de Pedra da Moreninha. Se as índias chegavam ao topo escalando a parede íngreme, os visitantes atuais conseguem acessar a parte alta sem tanta adrenalina: na década de 1960, foi construída uma ponte, o que transformou o local em mirante. Outro detalhe aproxima ainda mais a gruta da realidade: no livro, é descrito que haveria uma fonte em seu interior e quem bebesse daquela água encontraria um grande amor na ilha. Na vida real, esse rótulo foi atribuído ao líquido oriundo do Poço de São Roque a poucos metros dali.
Diversos outros endereços cariocas misturam ficção com realidade e dessa forma, alguns pontos da cidade ficam imortalizados para as gerações futuras.
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