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Trajetória do industrial Henrique Lage vira livro


A vida do empresário Henrique Lage é tema do novo livro do historiador Clóvis Bulcão. O título, lançado no final de setembro, traz um apanhado dos negócios e da vida amorosa do industrial, casado com a cantora lírica italiana Gabriella Besanzoni, para quem construiu o palacete do Parque Lage. “Henrique Lage - O Grande Empresário Brasileiro Que, Por Amor, Criou Um Parque” foi lançado pela Editora Record e está à venda nas principais livrarias.


“Não sabia exatamente quem era Henrique Lage, muito menos as ações da família Lage. Eles são estabelecidos na Baía de Guanabara desde um ano após a independência. Sempre atuaram no ramo de navios. Faziam pequenos reparos, abasteciam embarcações com carvão e assim, melhoraram a vida”, descreve o escritor, apontando que o título aborda os investimentos familiares desde antes do nascimento de Henrique a fim de justificar seu modo de vida. “Com a Guerra do Paraguai, os barcos de guerra passaram a ser movidos a carvão e com isso, os Lage ganharam muito dinheiro. Foi uma família que viu a guerra como fonte de lucro. Era um negócio”.


Seguindo a mesma linha, Henrique multiplicou sua fortuna na Primeira Guerra Mundial, conforme descrito na pesquisa. “Num momento em que o Brasil praticamente não recebia mais carvão, ele tinham prestígio comercial suficiente para manter algum fornecimento. Os Lage já queriam investir no carvão de Santa Catarina, que era muito mal visto pela opinião pública brasileira porque realmente é de pior qualidade, mas movia navios e trens, ou seja, funcionava. Na falta do importado, foi o usado”. Durante esse conflito, o empresário tornou-se o chefe da família, uma vez que seu pai havia morrido e dois dos irmãos foram vitimados pela pandemia de gripe espanhola.


Nessa fase, criou a Companhia de Navegação Costeira, o que impulsionou os navios da classe Ita, muito destacados por Bulcão. “Era o único meio de transporte que o Brasil tinha (a nível nacional). Os navios do Ita se tornaram sinônimo de qualidade. A Rachel de Queiroz contava que nem conseguia dormir antes de embarcar em um e que sua família aprontava até enxoval. O Joel Silveira, jornalista, lembrava que em todas as capitais nordestinas, quando eles atracava, viravam point pelas bebidas e copos limpos. Isso tudo ficou para trás”.


O escritor descreve a importância dos Itas apontando que a primeira vinda de Getúlio Vargas ao Rio de Janeiro foi a bordo de um, acompanhado da filha Alzira, que descreveu que mulheres ganhavam flores e crianças, bombons. “Era muito requintado!”. O impacto da frota de Henrique Lage é descrito também em outras passagens, como a do nascimento de Itamar Franco, batizado em homenagem ao barco (“sua mãe estava a bordo, onde havia até médico”), e a da citação no samba do Salgueiro de 1993, “Peguei Um Ita No Norte” (popularizado pelo refrão “explode coração na maior felicidade…”). Nem mesmo a sujeira, decorrente do uso do carvão que movia as embarcações, era tolerada: “Lá em Imbituba, onde ele criou um porto em Santa Catarina, até hoje os moradores contam que se um Ita encostasse, Henrique vestia uma luva branca e ia ver se estava limpo e sem fuligem”.


Outros negócios do empresário também são abordados no livro, que relembra a indústria de aviões no entorno da Baía de Guanabara na iminência da Segunda Guerra Mundial. O objetivo de Lage seria treinar pilotos brasileiros. “Ele produziu tantos aviões que a fábrica teve que sair da Ilha do Vianna e ir para a ponta do Caju, o que foi um enorme sucesso tecnológico e comercial”. Para o historiador, o industrial era um visionário: “O Brasil vivia a República Velha. O cara tinha que fazer avião sem ter aço porque não tinha indústria. Ele mexia com carvão, aço, navio, avião… É algo que a gente nem imagina hoje no Rio. A história do Henrique Lage é maravilhosa. Mostra um momento que o Rio tinha uma força industrial enorme. Ele era um empresário que viu a guerra como um negócio, como vários outros europeus. O grupo Renault fez tanques e o Krupp, canhões”.


Foi também nessa época que financiou todo o mármore usado na sede da Academia Militar de Agulhas Negras (AMAN), os talheres e os novos uniformes usados pelos cadetes. “O primeiro espadim da primeira turma também foi financiado por ele. Até hoje é o cadete número 1 da AMAN. Na chamada, os professores ainda chamam por Henrique Lage e todos respondem ‘presente’. O Lage ajudou a construir a imagem do soldado profissional bem preparado”.


Nesse contexto de investimentos e lucros com a guerra, ainda inaugurou um alto forno (reator químico usado na siderurgia), mas morreu em 1941, deixando todos os bens para sua esposa. Gabriella era muito próxima do ditador Benito Mussolini, de quem tinha um retrato em seu palacete, então chamado de Villa Gabriella. “Ela não escondida de ninguém a intimidade com o regime fascista e chegou a ir à Alemanha antes da guerra. Foi recebida como uma musa, o que ela era”


Para o historiador, o reconhecimento de Gabriella no exterior ainda não foi superado por nenhum outro nome. “Defendo que ela foi a moradora do Rio mais famosa que a gente já teve. Nenhuma outra mulher foi tão badalada quanto a Besanzoni. Cantou nos melhores teatros do mundo, era a garota-propaganda da indústria fonográfica nos Estados Unidos, era muito famosa. Quando o Henrique morreu, tudo foi parar na mão dela”, comenta Bulcão, que continua: “Uma italiana, enquanto o Brasil estava em guerra contra a Itália, ficou com os navios, os aviões, o carvão… Estava tudo assentado em situações estratégicas para o Brasil vencer e foi parar nas mãos de uma italiana ligada ao Mussolini. Não só ela como todos os outros, e também os alemães, tiveram seus bens desapropriados. Com isso, ela perdeu muito”, acrescenta, mencionando o que foi feito da fortuna dos Lage.


A história de amor do casal também ganha espaço no livro. “Ele a conheceu enquanto ela cantava no Theatro Municipal, em 1918. Estava apresentando uma ópera chamada ‘Sansão e Dalila’, que é muito sensual. Uma parte é apenas dançada e chama-se ‘Bacanal’, para você ver como era caliente o negócio. Ela cantava descalça, com pernas à mostra… Era de uma vulgaridade absurda naquela época, mas ela eletrizava as plateias e o Lage ficou louco. Foram sete anos cortejando. Ela tinha amantes, namorados, namoradas… Era uma mulher muito cobiçada”, observa o historiador, que pesquisou também a biografia da artista para produzir a do esposo: “Ela contou que se apaixonou pelo Henrique quando, numa das viagens ao Rio, ele a levou para jantar no Pão-de-Açúcar. Ela ficou enebriada pelo luxo, pela vista e não resistiu. Para o casamento, ela impôs uma condição: a de seguir com a carreira. Ele determinou outra: ela não deveria mais cantar ‘Sansão e Dalila’”. Apesar da proibição, o maior diamante que Henrique deu à amada recebeu o nome da ópera proibida.


Bulcão descreve o Parque Lage como a consagração do amor dos dois. “A terra já era dele e os jardins já existiam. Então, construiu o palacete e eles se mudaram para lá em algum momento nos anos 1930, não se sabe exatamente quando”. Os eventos sediados na propriedade, em sua visão, ajudaram a transformar a opinião coletiva do bairro do Jardim Botânico. “Era meio subúrbio, com muitas fábricas e favelas. O Parque Lage ganhou esse ar mítico muito por conta das festas organizadas lá. Eram quase óperas. Todas eram temáticas, todo mundo ia fantasiado. Na última, até o Vargas foi enquanto estava no comando político do país. Isso fazia com que o Brasil todo pensasse o que deveria ocorrer nelas. Não é a toa que para fazer festa até hoje no Parque Lage é uma coisa diferente. É caro, só os endinheirados fazem… Tinha uma época que a Bienal do Livro fazia uma lá para a abertura do evento. Eram super concorridas, maravilhosas, quase padrão Gabriella Besanzoni”, pontua.


A artista é apontada também como a responsável por ter conseguido levar os negócios do marido a outros países. “Lage quis levar navios a Buenos Aires para integrar os mercados argentino e brasileiro. Havia resistência a barcos brasileiros. Como ele conseguiu? Ela foi cantar no Teatro Colón, em Buenos Aires, e o presidente de lá era casado com uma cantora lírica portuguesa. Elas se conheciam e a presença da Besanzoni na capital era, se comparado aos dias de hoje, como se fosse a Beyoncé ou a Madonna por lá, com a imprensa toda em volta, babando”. Graças a essa abertura, Henrique também ganhou uma licitação para construir o primeiro petroleiro da América do Sul.


O historiador acredita que sua pesquisa pode alavancar ainda mais o turismo no Parque Lage. “É um lugar icônico que, no final do governo do Juscelino Kubitschek, foi destombado. Com isso, o Roberto Marinho e o pai do Fernando Collor iriam construir lá. Eles tinham dois projetos. Ou iam fazer um cemitério vertical ou um empreendimento imobiliário. Isso já nos anos 1960, o que pressionou o governador Carlos Lacerda a tombá-lo novamente, salvando-o. Agora, estão saindo dois livros, o meu e o da Marina Colassanti (sobrinha-neta de Gabriella). Quando saiu o meu da Família Guinle, houve um novo olhar sobre o legado da família na cidade. O número de visitantes do Parque Lage é de 120 mil pessoas por mês. É muita gente e ninguém sabe a história daquilo. Com os dois livros, enxergo grandes chances de sair do papel o projeto, que está pronto e aprovado, com todas as licenças ambientais, de restauro tanto do jardim quanto do prédio. Talvez os dois livros, juntos, consigam mobilizar esse interesse. Estou otimista. Por ali, passou a história do Rio e do Brasil”, finaliza.

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