Quando a Beija Flor entrou no Sambódromo no carnaval de 1989, ninguém imaginava que a escola entraria para a história do carnaval com um desfile sobre desigualdade social que continuaria vivo no imaginário popular tanto tempo depois, mesmo sem ter vencido. Mais de 30 anos depois, o público tem a oportunidade de reviver aquele momento por meio do espetáculo “Joãosinho & Laíla: Ratos e Urubus, Larguem A Minha Fantasia”, que narra as histórias do carnavalesco Joãosinho Trinta e do diretor de harmonia Laíla, duas figuras icônicas que ajudaram a transformar as escolas de samba nos espetáculos apresentados nos dias atuais. Os atores Wanderley Gomes e Cridemar Aquino, respectivamente, interpretam os personagens, que ganham vida no texto de Márcia Santos sob direção de Edio Nunes, que participou do desfile homenageado.
“Eu estava lá! Foi algo icônico, marcante…”, lembra, mencionando estar inserido nesse meio desde a infância. “Desde os nove anos sou passista da Mangueira. Fui criado em Madureira, na Império Serrano. O samba sempre atravessou minha carreira como diretor, coreógrafo, como tudo”, lembra o diretor, que escutou todos os sambas da Beija Flor entre 1975 e 1989, junto com Márcia, para definir uma seleção que ajudasse a contar a história, incluindo o que dá nome ao espetáculo.
A polêmica envolvendo a figura da imagem do Cristo vestida de mendigo, que desfilou censurada no abre-alas devido a uma ordem judicial, é uma das maiores surpresas da encenação. Diferente do ocorrido em 1989, quando o público viu um plástico preto acompanhado da faixa “Mesmo proibido olhai por nós”, dessa vez a mensagem da peça será repassada, mas de uma maneira diferente. “É uma surpresa guardada a sete chaves. É algo que ninguém espera e que aparece apenas no final”, promete Edio, ansioso com a repercussão do público no momento que essa cena acontecer em cada sessão. No Desfile das Campeãs de 1989, o diretor foi uma das pessoas que ajudou a tirar a cobertura que tapava a peça, que pôde ser vista, finalmente.
A ansiedade também é sentida pelos atores que interpretam os protagonistas. “A gente está saindo de uma pandemia onde as pessoas ficaram muito presas dentro de casa. O carnaval é o momento de redenção. A gente começou esse ano com Exu abrindo as porteiras lá pela Grande Rio. É muito importante que as pessoas estejam nos teatros assistindo histórias bonitas, que toquem suas vidas. Trazer as dessas duas pessoas, cercadas de carnaval, está sendo maravilhoso. A gente sente que o público quer e merece estar no teatro para se divertir, se emocionar, ser tocado pela grandeza que o carnaval é e sempre vai ser”, analisa o intérprete de Laíla.
Gomes, por sua vez, espera uma explosão de alegria no palco: “Estamos muito carentes do carnaval, que é uma grande festa. (Fazer um Carnaval fora de época) é a nossa intenção”. “A gente está aguardando que o povo do samba esteja presente. Muitas pessoas de departamentos culturais das escolas estão procurando a produção da peça para trazer as Velhas Guardas. Outros setores das escolas querem conhecer as histórias do João e do Laíla. A gente está muito feliz porque o retorno está sendo muito significativo. Queremos que todas as co-irmãs estejam dentro do teatro, que consigam convocar suas comunidades para assistir essa bela história que a gente está preparando”, convida Nunes.
Os artistas não se limitaram a estudar apenas as trajetórias profissionais dos homenageados, a fim de construir os personagens de maneira fiel. “A gente teve a possibilidade de frequentar a família do Laíla. A esposa e o filho foram muitos próximos da gente durante esse processo e nos deram bastante tranquilidade para construir um trabalho com o respeito necessário para viver essa figura. Era uma figura midiática do samba, mas era um homem, um pai, um avô muito carinhoso com seus netos. A gente procurou trazer nesse trabalho a humanidade desse homem. Ele não era só aquilo no carnaval. A figura dele é emblemática para a escola de samba”, comenta o intérprete do diretor, complementado pelo parceiro de cena: “Pra mim, que estou batalhando e ensaiando Joãosinho Trinta, está sendo uma loucura. Tenho grande respeito por esse homem incrível. Preciso fazê-lo maravilhosamente bem, do jeito que ele foi. Os dois mudaram a história do carnaval. A gente tem que apresentar isso com a grandeza que eles tiveram”.
O texto passeia por várias particularidades da dupla, sanando dúvidas que até os atores tinham. “Sempre tive curiosidade de saber como o Joãosinho Trinta conseguia fazer grandes carnavais, de luxo. Como ele conseguia os enredos? Nunca entendi, mas hoje, está muito claro descobrindo de onde ele veio, como teve as ideias e a luta que foi colocar os carnavais na rua. Para mim, foi uma grande descoberta”, celebra o intérprete. Aquino também se surpreendeu com algumas descobertas: “O Laíla teve uma vida muito extensa, com muitas curiosidades, desde quando era menino, lá no Morro do Salgueiro. Muita gente acha que ele é de Nilópolis. Não, ele é cria do Salgueiro. É importante que as pessoas saibam que ele tinha uma história além da Beija Flor. Vamos falar de momentos únicos que as pessoas não conhecem”.
Foi no Salgueiro que as trajetórias dos artistas homenageados se cruzaram pela primeira vez, em 1973, quando Joãosinho Trinta foi contratado – Laíla compunha a agremiação desde 1968. Foram juntos para a Beija-Flor em 1975. Laíla, por sua vez, trabalhou em outras escolas de samba até retornar a esta em 1987. A dupla trabalhou em conjunto até 1992, quando ambos buscaram novos rumos profissionais. Laíla ainda retornaria à Beija Flor em 1994, onde atuou por 18 anos. Morreu em 2021, vítima de COVID. Joãosinho, por sua vez, foi vítima de um choque séptico dez anos antes.
“Mais que contar a história desses dois, a gente está levando aos palcos o relacionamento deles durante o desenvolvimento desse enredo (“Ratos e Urubus”). A ideia é levar ao espetáculo o universo do barracão. O que acontece nele? Quem são as pessoas que estão ali? Quem são essas figuras do carnaval? A gente fala um pouco das passistas, dos carnavalescos…”, adianta Márcia, que promete também fazer a plateia relembrar memórias daquela época: “Através de uma rádio local, a gente contextualiza aquele período para o público, mostrando o que estava acontecendo no país naquele momento. Por exemplo, o Ayrton Senna ganhou o primeiro campeonato. A gente teve o ano novo que o Bateau Mouche afundou. São coisas icônicas, que geram pensamentos como ‘Onde eu, que estou assistindo, estava?’.
O elenco apresenta ainda Ana Paula Black e Milton Filho, que se desdobram em vários papeis. O clima carnavalesco é complementado pelos músicos Fábio D’Lélis (percussão), Leo Antunes (cavaquinho) e Marlon Jr (violão)
De 9 de junho a 3 de julho, de quinta a domingo, às 19h | Local: Arena do Sesc Copacabana (Rua Domingos Ferreira, 160) | Ingressos: R$ 7,50 (associado do Sesc), R$ 15 (meia-entrada), R$ 30 (inteira) | Horário de funcionamento da bilheteria: de terça a sexta, das 9h às 20h; e sábados, domingos e feriados, das 13h às 20h | Classificação indicativa: 12 anos | Duração: 75 minutos
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