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Loja tradicional de artigos náuticos coleciona histórias ao longo de décadas



Se pudesse falar, a loja O Veleiro, no Centro, teria muitas histórias pra contar. Com mais de 60 anos de funcionamento e consideraa Patrimônio Cultural Carioca pela Prefeitura, vivenciou algumas mudanças de endereço; conheceu nomes importantes a vela, como Amyr Klink; foi transformada em editora de livros, se viu inteiramente queimada em um incêndio e renasceu das cinzas no tempo recorde de 18 dias; resistiu a uma pandemia e muito mais, sempre oferecendo artigos para essa modalidade esportiva. Atualmente funcionando em um sobrado na Rua da Candelária, é gerida por Alaíde Mille, viúva do proprietário original, que a abre apenas quando está no Rio e em horários diferentes dos demais espaços comerciais.


Inaugurada em 1966, na sobreloja da extinta Livraria Pantheon, em Copacabana (o endereço original era Rua Barata Ribeiro, 502D), a O Veleiro nasceu da necessidade do francês Jacques Mille, radicado no Brasil, em encontrar artigos para seu novo hobby. Naquela altura, já havia trabalhado com produção de doces, mas, fanático por literatura, começou a vender títulos franceses de porta em porta até abrir a loja de livros.


Alaíde entrou em sua vida quando esse negócio já havia sido montado. “Quando o conheci, trabalhava em uma loja náutica no Iate Clube. Vim trabalhar já sabendo o que é manilha”, exemplifica, compartilhando que a primeira vez que entrou em um veleiro foi no do marido. “Eu não conhecia nenhum por dentro”. Juntos, o casal montou a editora Edições Marítimas Ltda., com livros exclusivamente sobre viagens de velejadores. O primeiro foi o de Joshua Slocum, que deu a primeira volta ao mundo a bordo de um veleiro, em 1894. A partir deste, outros, principalmente de velejadores franceses e ingleses, foram descobertos em revistas internacionais especializadas e a partir de então, os direitos eram adquiridos para o material ser publicado no Brasil.


“Chegamos a ter 30 e tantos títulos”, aponta, mencionando, entretanto, haver poucos de velejadores brasileiros – a maioria é de franceses e ingleses. “Todo mundo acha que é o Paulo Coelho e procura editoras grandes, mas elas só costumam fazer uma tiragem”. Apesar de os nacionais não terem tanta presença na editora, alguns nomes já marcaram presença no O Veleiro, como Amyr Klink, que fez fez palestras na loja. “Todo mundo o conhece”, analisa, mencionando outros nomes que, em sua visão, merecem o mesmo destaque, como Aleixo Belov (que, apesar de nascido na Ucrânia, vive no Brasil desde os seis anos), que já lançou dez livros e fez cinco voltas ao mundo; e Cabinho, que já assinou mais de 1,5 mil projetos de embarcação, inclusive para Klink.


Atualmente, a editora conta com dois títulos inéditos, prontos para serem publicados, mas Alaíde repensa sobre o presente e o futuro do negócio. “Não sei se vale a pena a trabalheira”, diz, em tom de lamento. Seu pessimismo é justificado pela dificuldade em ofertar os títulos a livrarias atualmente (“o problema é que elas querem consignado”) e pelo entorno da loja, onde há apenas um prédio funcionando. “A cidade está muito abandonada. Nesse trecho, havia algumas das maiores empresas do Brasil”, lembra. Devido ao seu receio, a porta da O Veleiro – a loja não é identificada por nenhum letreiro – é constantemente trancada. Para entrar, basta bater na porta – o edifício da frente funciona como um espelho, permitindo que a comerciante enxergue quem deseja entrar. Além disso, os clientes são recebidos majoritariamente mediante agendamento.


“Se estou no Rio (Alaíde vive em Ilha Grande), venho todos os dias. Os clientes dizem que estou brincando de ter loja, mas aos 75 anos, posso me dar ao luxo de brincar de qualquer coisa”. Por isso, para garantir que os possíveis compradores encontrem o local funcionando, ela pede que liguem antes. “Se marcar comigo, fico esperando”. Já há alguns anos, trabalha sozinha, sem funcionários. “As pessoas falam que posso fechar a loja e fazer outras coisas, mas ninguém pergunta se gosto. Eu gosto de estar aqui, me mantenho ocupada. Não preciso de muitos clientes, basta um muito bom por semana”.


Foi sua paixão pelo negócio que o manteve de portas abertas após um incêndio em 1992, muito lembrado durante a conversa. “Tivemos que recomeçar do 0”, lembra. “Não tinha nem balcão”. Só de livros foram perdidos 50 mil cópias (posteriormente, outros 17 mil foram roubados), além dos outros produtos. O incidente abalou Jaques, que sugeriu que o casal se mudasse ou para a Europa ou para Ilha Grande, mas Alaíde insistiu na reabertura da loja. “Eu não queria sair do Brasil e precisávamos mostrar para nós mesmos que éramos capazes. Se temos um problema, temos que resolver. A gente arregaçou as mangas e fez de tudo para o novo espaço ser o mais bonito possível”, menciona. O incêndio foi em 2 de dezembro e no dia 20, o novo endereço já estava funcionando, com todos os produtos expostos no chão. Nele, a loja funcionou por 14 anos, sendo que nos cinco primeiros, ainda estava sendo arrumada. Apesar dos caprichos no novo endereço, citado como muito bonito e enfeitado por uma elegante claraboia, Alaíde sentiu necessidade de retornar ao anterior para encerrar o ciclo dele, o que aconteceu em 2006.


“É muito difícil dormir com a vida arrumada e acordar com ela estraçalhada. Eu tinha que voltar para aquela loja”. Na época, foram impressos folhetos que anunciavam “O Veleiro retorna ao seu antigo porto” e ali, a loja funcionou por mais quase 14 anos, até 2019, quando houve a mudança para o sobrado atual. “Entre setembro e dezembro, fiquei ajeitando a loja”. Em 2020, houve um coquetel de lançamento de um livro e logo em seguida, veio a pandemia, que modificou de vez o funcionamento. O lockdown levou Alaíde a reviver o antigo sonho de Jacques, nessa altura já morto, de morar em Ilha Grande.


Apesar do retorno tímido ao negócio, a proprietária garante manter o padrão de qualidade de sempre. “Não trabalho com segunda linha. Aqui só tem produtos de primeira”. Alaíde mostra querer que os clientes saiam satisfeitos. “Sempre orientei aos funcionários para perguntarem a finalidade de cada produto vendido”. Assim, evitava que comprassem mercadorias mais caras que as necessárias para seus objetivos. Dessa forma, conquistou o público ao longo de gerações. “Há gente que vinha criança e agora traz os filhos. Daqui a pouco, trará os netos”, sonha, informando outros planos para manter O Veleiro querido pelo público. “Quero abrir a loja uma vez por mês para os velejadores virem jogar conversa fora, tomar uns drinks…”, conclui, enxergando possibilidades diversas para seu negócio do coração.


A loja fica na Rua Candelária, 74. As idas podem ser combinadas com Alaíde por meio do telefone (21) 99219-4087.

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